quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

“É o refrão, estúpido!”


A intenção não é ofender… Eu apenas adaptei a famosa frase da antiga campanha que elegeu Bill Clinton presidente dos Estados Unidos (“It’s the economy, stupid”, que atacava um ponto fraco do favorito à reeleição, Bush “Pai”, que havia descuidado da questão econômica bem quando o país estava em recessão) em 1992 – e por uma causa justa: para defender a importância do refrão na música pop.

Quando comentei recentemente que um dos problemas da “pseudo obra-prima” de Kanye West, “My beautiful dark twisted fantasy” – um título que, como me ocorre agora, seria perfeito para o filme “Cisne negro” (mas eu, claro, divago) – era que o tal artista negligenciava a questão do refrão (com raras exceções) deixei claro que queria desenvolver mais o assunto. Os patrulheiros de plantão responderam previsivelmente protestando. Alguns na linha “grandes clássicos do rock/pop (e até hip-hop) não precisam de refrão” – uma idéia fácil de rebater quanto o mero exercício de lembrar algumas das melhores músicas dos Beatles. De “D’yer mak’er”, do Led Zepellin, a “Smells like teen spirit”, do Nirvana – até “Heavy cross”, do The Gossip, ou mesmo “Liztomania”, do Phoenix – os exemplos são infinitos de um feliz casamento entre “rock de verdade” (seja lá o que for isso!) e um bom refrão.

O outro tipo de “protesto” vinha de vozes que achavam que refrões só servem a artistas “fáceis”, “fabricados” ou “……..” (coloque o adjetivo pejorativo que você preferir aqui), que fazem uso desse “golpe baixo” para conseguirem espaço nas rádios – e assim abduzirem nosso gosto musical com “músicas ridículas”… Bem, sem a menor intenção de diminuir o talento de nomes manjados que fazem um enorme sucesso nas rádios (e que eu também sei apreciar) – de Britney Spears a Justin Bieber, para ficar apenas nos exemplos recentes – aqui vai uma breve lista de artistas geniais, criadores de refrões memoráveis e portadores de credibilidade, acredito, inabaláveis: David Bowie (“Changes”, “Ashes to ashes” etc.); Queen (“Love of my life”, “We are the champions” etc.); The Clash (“London calling”, “Should I stay or should I go” etc.); U2 (“I still haven’t found what I’m looking for”, “One” etc.); The Smiths (“There is a light that never goes out”, “How soon is now?” etc.); The Cure (“In between days”, “Boys don’t cry” etc.); Radiohead (“Creep”, “Let down” etc.); The Strokes (“Last night”, “Someday” etc.) – e segue…

 

Preciso reforçar dizendo que não endosso nenhuma desses “argumentos de protesto”? Não existe nada mais sublime, em música pop, do que o mistério de um trecho de uma música que você ouve uma vez e imediatamente quer ouvir de novo. Um bom refrão é sim uma obra de arte de primeira – e a ausência de bons exemplos numa temporada musical pode ser inquietante. A ponto de provocar reclamações ressonantes como o texto recente de Jon Pareles – um dos mais respeitados críticos de música, que escreve no “The New York Times” – sobre uma “sensação deprimente” que tomou conta dele ao tentar ouvir rádios de música pop recentemente.

A decepção de Pareles não era apenas com a mesmice e a “falta de profundidade” das canções que ele ouviu casualmente – seus exemplos eram “Dynamite”, de Taio Cuz, “Baby”, de Justin Beaber, e “Imma be”, do Black Eyed Peas. Fuçando no atual cenário alternativo, ele não encontrou também muita consolação – e olha que ele estava falando de “I want to” do Best Coast. Sua meditação segue de maneira brilhante por caminhos mais ambiciosos (e “filosóficos”) do que eu pretendo abraçar hoje aqui – como você pode conferir neste trecho, como sempre, na minha tradução apressada:

“Os bordões para lá de familiares do século 21 – muita informação e os reduzidos intervalos de atenção que são resultados disso – só crescem mais insistentes década adentro. As técnicas de gravação de ‘loop’ e ‘samples’ encoraja produtores sem imaginação a repetir algo meramente adequado à duração de uma música, no lugar de enriquecê-la. O som dos MP3s que sai pelos fones de ouvido privilegiam o que é frágil e pequeno, não o exuberante e sutil”.

Mesmo assim quero “usar” Jon Pareles como “escada” para sugerir que o problema do pop atual é agravado pela ausência de um refrão perfeito. Quem é que está preocupado com isso? E quando digo “refrão perfeito”, não estou pensando apenas em uma quadrinha bonita, com uma rima justinha, que a gente canta quase sem perceber. Pode ser apenas uma frase – por exemplo, “Hey ya!”, do Outkast! Ou mesmo só um gritinho – tipo “U-hu!”, como o Blur faz em “Song 2”. É pedir demais? Eu sei que é…

Momentos inspirados como os que citei acima são raros. O mais comum é que encontremos bons refrões que são como trabalhos de carpintaria, nos quais se percebe que um músico (ou uma banda) perdeu um bom tempo trabalhando em cima de um tema para sair com algo próximo à perfeição. O próprio Blur, que acabei de citar, tem vários composições nessa linha: “Out of time”, digamos. Raras vezes se reuniu tanta melancolia e tranquilidade numa quadrinha – que ainda vem com o toque de gênio de Damon Albarn, quando ele, antes de a música terminar, repete o último verso, não quatro (como seria de se esperar), mas cinco vezes, uma mais bela e mais triste que a outra…
Já ouviu “Oblivious”, de uma banda dos anos 80 chamada Aztec Camera? Desafio você a me apresentar um refrão mais fofo, mais apaixonado e mais sincero do que esse – que certamente também deu trabalho para sair. Pegue “Ragazzo fortunato”, do italiano Lorenzo “Jovanotti”! Redondo, bonito, uma explosão de alegria! Ou que tal um mantra hipnótico como o clássico pop “Sweet dreams (are made of this)”, do Eurythmics? Você acha que o brilhantismo de “I get around”, do Beach Boys, surgiu assim, do nada? E quantas vezes você acha que o Manic Street Preacher teve de experimentar uma frase musical que, não só contivesse, mas também adornasse e elevasse a um outro patamar o sensacional grito de guerra “If you tolerate this then your children will be next”?

Não quero dizer que é impossível fazer pop sem refrão. De vez em quando, somos brindados com uma “obra magna” que não só dispensa o “corinho” como abala nossa estrutura de ouvinte. O caso mais óbvio, claro, é “Bohemian rhapsody”, do Queen – que do alto dos seus mais de seis minutos nos fez acreditar, pelo menos por algumas semanas de 1975, que a ópera era o novo pop! Nada em “Paranoid android”, do Radiohead, se parece com um refrão – o que não torna a faixa menos fundamental. Eu citaria aqui “Eduardo e Mônica”, do Legião Urbana, não fosse o fato de a música, que não repete nenhum verso (fora a introdução “Quem um dia irá dizer…”), tem sim um refrão disfarçado – o tema musical que é retomado a cada estrofe da saga do casal. Nesse sentido sou mais Caetano Veloso com seu “Ele me deu um beijo na boca”, com seu versos aparentemente soltos que sem esforço (e sem repetição) se encaixam na música simples, valorizando a batucada…

 

Aliás, nem é preciso que a música seja longa para ela poder esnobar o refrão – e mesmo assim conquistar seus ouvidos. Alguns músicos argentinos, em particular, são muito bons nisso – fora Juana Molina, que é mestre nisso e já foi bastante citada neste espaço, sugiro que você confira os mantras musicais de El Robot Bajo el Agua (“De frente”, “Dale que va”, e sobretudo a belíssima “Vertiente”, que não tem nem sombra de um estribilho), e ainda o bizarro e sublime som do A-tirador Laser, do músico Lucas Marti, que assina talvez a mais bela canção sem refrão que eu conheço, “Atemporal”.

(Parênteses necessário: os argentinos são muito bons também de refrão, como você pode conferir em trabalhos de artistas como Migue Garcia, Rubin, Gabo Ferro, La portuaria – “y muchos otros”. E é um prazer, como vou explicar em breve, encontrar, em outras línguas, exemplos de que o encanto do refrão é universal!).

Mas é que o apelo de um trechinho de música instantaneamente reconhecível é irresistível – e inquestionável. E foi por isso que eu considerei o último álbum de Big Boi (“Sir Lucious left foot – The son of Chico Dusty”) bem melhor do que o de Kanye West (“My beautiful dark fantasy”). Ainda acha que eu exagero? Então seja honesto ou honesta: que música você preferiria ouvir em “loop” por meia hora, “Power” (Kanye) ou “Tangerine” (Big Boi)? A segunda, claro, que tem refrão, claro!

Qual o problema de se apoiar numa estrutura dessas? Longe de ser apenas uma muleta, um bom refrão é um trampolim para um reconhecimento maior e uma aceitação quase universal. Duvida? Então pergunte a Lulu Santos, que há mais de duas décadas produz um refrão mais cativante que o outro – e se você nunca cantou um deles, só posso sentir pena… Acha Lulu “pop demais”? Que tal então Tim Maia? Lembra de “A semana inteira, fiquei te esperando…”? Tenho certeza de que você vai completar os versos sem eu precisar te ajudar…

Nosso pop – apesar de algumas bandas, especialmente as mais contemporâneas, ainda insistirem em apertar versos que não cabem em truncadas frases musicais, e muitas vezes nem rimam (você sabe de quem estou falando) – tem exemplos impecáveis dessa ourivesaria musical. Como “Fácil”, do Jota Quest. Ou “Passe em casa”, dos Tribalistas. Ou quase tudo do Skank. Ou “Me adora”, da Pitty. Ou (e eu sei que muitos vão parar de ler este texto por aqui), “Bolha de sabão”, de Cláudia Leitte. Ou (e aqueles que não pararam de ler na última frase, certamente vão parar nesta) “Ei, psiu, beijo me liga”, digamos, com Michel Teló…

E talvez seja por isso que nossa música viaja tão bem – e disso eu entendo. Quando chego em qualquer lugar do mundo, logo que falo que sou brasileiro, a conversa invariavelmente termina em música (depois de uma escala, claro, no futebol!). Nós temos esse “poder” – o da música – e temos o privilégio de ele ser bem disseminado pelo nosso modesto planeta. Mas para já ir encerrando o texto de hoje, queria defender outros pops – outros refrões. Por um motivo simples: se mal temos tempo de ouvir tudo de bom (e de ruim) que é produzido no pop brasileiro, que chance temos de conhecer o que é feito no resto do mundo?

Pois eu estou aqui para ajudar… e provar que esse apelo do refrão é, como já mencionei, universal! Para isso, peço primeiro para você deixar de lado seus pré-julgamentos. Vamos usar, para isso, uma banda que (muito provavelmente) você não conhece: El Canto del Loco, da Espanha. Deparei-me com o trabalho deles quando, no ano passado, pesquisava coisas legais para comprar numa visita rápida que fiz a Madri. Nunca tinha ouvido falar nada deles antes – e logo quando ouvi a primeira música que apareceu no youtube, enlouqueci. Ela era “Besos” – a melhor evidência incontestável de que os caras nasceram para cuspir um refrão bom atrás do outro. Depois vieram mais: “Canciones” (com seu “rock de breque”); “Zapatillas” (com um refrão ainda mais irresistível que o de “Besos”; “Años 80” (que muitos talvez achem que seja uma balada ordinária, mas eu prefiro chamar de “uma armadilha para seus ouvidos”); “Son sueños” (uma balada que talvez você ache ainda mais ordinária, mas que eu acho ainda mais genial); “Peter Pan”…

Convido então você a fazer esse exercício: ouvir o trabalho de uma banda (supostamente) desconhecida e ver se você se encanta com sua música, independente de que língua ela seja cantada. Aliás, vou fazer melhor: a partir de hoje, para produzir um dossiê de evidências de que não existe nada mais poderoso do que um bom refrão, eu vou oferecer a você, no final de cada texto, uma música que eu acho que traz um exemplo perfeito disso.

Toda segunda e toda quinta eu vou tentar sempre te surpreender – e, para isso, independente do assunto que eu estiver comentando, vou indicar uma música no final do post, sob o subtítulo “O refrão nosso de cada dia”. Algo simples, apenas um parágrafo e um link – para quem sabe te ajudar a matar uns minutinhos da sua aborrecida aula/rotina/insônia…

Vou aceitar suas sugestões também – mande músicas que você acha que tem refrões perfeitos, em qualquer língua, de qualquer gênero. Assim podemos fazer juntos uma “Enciclopédia do bom refrão”. Sem vergonha de cantar junto (mesmo errado). E tenho dito!

O refrão nosso de cada dia

“Fai yen”, Ream Daranoi – uma jóia encontrada na recente compilação de faixas de jazz e pop gravadas na Tailândia, entre meados nos anos 60 e 70, do disco “The sound of Siam” (você o encontra aqui). Meu tailandês está “um pouco enferrujado”, mas quem disse que você precisa entender uma palavra para ser embalado por essa voz? O que eu chamo de um bom começo para esse nosso espaço…

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